20 de setembro de 2013

Nota de uma manhã no hospital

Tinha mania de tentar adivinhar os rostos jovens que os velhos escondem. Tem gente que parece que nunca foi jovem, pensava, e criava histórias para os velhos da fila do hospital.
O senhor do boné era um garoto livre, esperto, morador do Rio de Janeiro. Era amante fiel de muitas e se apaixonou por uma delas, a mãe da moça que está sentada ao lado dele.

A senhora de 84 anos está ao lado da filha, as duas são grisalhas e se olham - a que cuida já foi cuidada, certamente já teve medo dos olhos que agora acaricia. Ninguém vive esperando que esse momento um dia exista - você vai crescendo, suas costas doem um pouco, mas sua mãe vai se doendo de tudo. Você acompanha ela até o médico, primeiramente, por causa de uma dorzinha no estômago, depois se vê dando o braço pra que ela não se desequilibre e num jantar de família te mostram uma foto que revela: os anos se passaram, foram levando a vida, os cabelos dela clarearam, sua filha a chama de vovó.
Envelhecer é morrer mais rápido a cada dia, há que se ter paciência com as perdas. Perde-se tudo, ou quase tudo, talvez fique só uma luzinha acesa ali no fundo, mas há que se saber lidar bem com perdas.
Tornar-se velho: entrar em uma estrada mais estreita e mais perigosa. Alguns ficaram no meio do caminho, há cansaço, não há negociação com o tempo, os argumentos são fracos, a rugas nos invadem.
Eu morro de medo de envelhecer, pensou. Lembrou-se de sua primeira estria, o quanto tinha chorado. Não vai suportar a incontinência, a dependência, a feiura das feridas feitas na pele sensível. Não poder sentar-se sozinho, ir ao banco pagar uma conta. Envelhecer é regredir aos poucos, voltar a terra c o n s c i e n t e m e n t e - o que dói. Talvez eu perca a cabeça um dia. Tem gente que esquece das coisas com o passar dos tempos. Talvez sofram menos esses, afinal esquecem que esquecem. Esquecem do que foi, do que será.
A mãe e a filha foram embora de mãos dadas. Vão tomar café em um supermercado. Se uniram, e eu penso que sempre se amaram, mas há algo que une na doença.
O velho do boné colocou óculos escuros e cruzou os braços. Deve estar tratando a vista, e o que é que isso importa. Já não há mais paciência pra se lutar contra a cegueira cinza da velhice.
O mundo vai desaparecendo bem na frente dos nossos olhos - vai se dissolvendo em grãos, virando areia, e os grãos vão entrando nos nossos olhos, e às vezes se cai por não conseguir mais olhar.

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