14 de janeiro de 2014



Acordei. São 8h34 da manhã. Estou de férias. Mas continuo acordando cedo. Tento me convencer de que é o costume, meu corpo tem achado difícil de entender que agora eu posso dormir. Mas é mentira, eu tenho acordado cedo nos últimos nove dias. Há exatamente nove dias nós trocamos as últimas palavras. Foi por telefone, pra piorar. Ela disse: me dê um tempo, estou confusa sobre o que fazer, acho que ainda te amo, mas não sei se ainda te acredito. Nos falamos depois. Beijo. E nunca mais me ligou. Nove dias parecem nove meses, tempo suficiente para eu criar um fantasma. Eu durmo e acordo com ele. Não deixei que a diarista trocasse os lençóis e durmo de forma cuidadosa, o lado que ela dormia está intocado, ainda consigo ver três ou quatro fios dos cabelos dela, e o cheiro dela está lá. Tento inalar o mínimo possível para que ele não saia, e agora o travesseiro que ela dormiu há nove noites tem lágrimas, seu cheiro e seus cabelos. 
Enquanto vivemos juntos, nos acostumamos ao meu choro. Quando brigávamos - eu tenho saudade das brigas bobas que tivemos - era eu quem chorava um rio inteiro, eu a beijava soluçando, e confesso que assim eu me sentia vivo, naquele momento poderíamos ser personagens de um romance ou de um filme, porque éramos apaixonados um pelo outro da forma mais intensa possível, ela sempre tinha que limpar as minhas lágrimas em seu rosto. Hoje eu limpo as minhas lágrimas no seu cheiro. Eu gostava tanto do seu cheiro, mas tanto que nem sei. Tanto que dói. É como se, quando eu a cheirasse, eu conseguisse colocá-la aos poucos dentro de mim, e ela ia preenchendo cada oco meu, ia pulsando aqui dentro, e eu me sentia cada vez mais seu, porque ela ia me habitando cada vez mais. Dói tanto sentir que ela ainda está aqui dentro, mas pode não estar mais aqui fora. Aqui ao meu lado. Não vou suportar por muito tempo a companhia do fantasma que criei - podem chamá-lo do que quiser, pois ele pode ser meu medo, minha insegurança, minha saudade, mas seja o que for, é algo que está tomando forma de gente, estou quase tendo um caso com esse ser. Eu quero mesmo ela, preciso dela dentro e fora de mim. Que merda. Eu sinto a falta dela. E percebo como a amo tendo medo de perdê-la para sempre. Isso pode ser posse, mas eu não quero perdê-la de vista. Perder a sua localização. Perder as notícias sobre a sua existência no mundo. Se pintou os cabelos, se vai conseguir deixá-los crescer, eu adorava os seus cabelos. E ela também. Eu brincava que eles eram duros, mas eles eram grossos, marcantes, pretos como o breu. Preciso respirar um pouco dela, mas ela não me atende, deve estar confusa até agora, isso me dá um medo de gelar as mãos.  Eu não sei, sei que não consigo mais tirá-la de dentro de mim. Inalei ela toda como se fosse droga, e suas preferências parecem as minhas agora, agora tudo que não era meu, mas dela, parece meu. É certo que compartilhávamos o interesse pela língua, mas de formas diferentes. Ela tinha tesão pela sintaxe da língua, e por isso gostava de desorganizá-la, reorganizando-a. A morfologia também não a escapava, era a gramática como um todo que a encantava. Gostava de brincar com o ínicio, o meio e o fim das palavras, brincando de quebrá-las e deixá-las à sua maneira – sempre muito cômica, gostava da ironia e do sarcasmo.
Ela falava como se fosse o narrador de um livro romântico - ou naturalista, se formos falar das suas descrições. Passei a observar ainda mais os detalhes do mundo depois que vi que os olhos dela eram aguçados para eles. Um dia, descrevendo um rapaz que conheceu em uma livraria, acabou revelando sua predileção a sorrisos simétricos. Na verdade, a simetria a encantava, afinal, gostava de organização, de arrumar as coisas segundo uma ordem, gostava da perfeição, e sabia-se perfeita. Quando, de vez em nunca, duvidava da sua beleza, eu tinha vontade de dizer que ela tinha toda a razão, era perfeita aos meus olhos, eu amava tanto a sua cintura que, quando saíamos na rua, eu precisava me policiar parar pegar na sua mão e não grudar a minha mão na curva do seu corpo. Era um prazer imensurável... Na hora de deitar, eu colocava a mão naquela cintura e podia e dormir feliz, eu dormia em questão de segundos, pois estava onde queria estar – a não ser quando o fogo me subia às veias e eu não conseguia parar de beijá-la, os beijos eram súplicas de mais beijos, de beijos em todos os cantos. Eu não parava de beijá-la. Muitas vezes ela teve de me chamar a atenção – Ei, esqueceu onde estamos? Eu adoro seus beijos, mas contenha-se um pouco!
Ela gostava de receber carinhos. Quando eu perguntava se estava exagerando, ela dizia: “Oras! Somos diferentes no modo de amar! E isso é tão bom. Imagina se fôssemos iguais? Ia ser tão sem graça! É como arroz e feijão!”. E eu me apaixonava cada vez mais. Eu me apaixonava quando ela não me deixava dormir porque queria ficar amando a noite inteira. Me apaixonei muitas vezes, quando ela usava um vestido branco que eu adorava. Pra falar a verdade, todo dia em que nos encontrávamos e nos beijávamos, parecia que era o primeiro dia e o primeiro beijo. Me subia um arrepio no peito e eu me apaixonava. Me apaixonei todos os dias por essa mulher. Quando ela me preparava lanchinhos e esquentava o pé dela no meu antes de dormir. Eu amei cada mania dela, eu amei a vida dessa mulher. E a existência dela no mundo virou a minha, eu já não podia viver sem saber como ela estava, sem fazer parte da existência dela, sem vê-la respirando. Ela tinha vergonha dos meus olhares. Eu sempre ficava como bobo admirando ela estando no mundo, e ela tapava os olhos – os meus, inclusive. Ela me olhava apenas quando sabia que eu não estava olhando, mas eu sempre soube quando ela me olhou. E me envaideci, me envaideci e tentei existir pra ela, eu queria brilhar tanto que a iluminasse. Eu ainda não consigo existir sem ela, estou sendo clichê mesmo, não consigo, simplesmente porque não suporto viver mal, não suporto viver sem existir, é como se eu não existisse agora, é como se não estivesse aqui, é como se tivessem interrompido a minha passagem pelo mundo, uma pausa na vida, a única coisa que me consola é o telefone aqui ao lado, e a minha espera, eu espero que esse telefone toque, ou que a campainha toque, espero que ela ainda me toque muitas vezes nessa vida, espero que possa tocá-la ainda, eu só espero, é esperança, pura esperança, o que me deixa respirar ainda.