Talvez
eu queira te contar a minha história. O problema é que na maioria das vezes eu
confundo a minha história com a da moça. Minha lembrança às vezes parece ser só
a dela, e isso aperta ainda mais o meu peito, sabe, minha filha? Imagina se eu
não saio mais desse hospital porque a lembrança da moça não deixa meu coração
melhorar? Talvez essa não seja mais a minha maior preocupação. Então,
prossigamos.
A
gente se conheceu no quintal da casa dela, quando eu tinha 8 anos e ela 6. Meu pai
era jardineiro e trabalhava na casa do senhor Júlio toda quarta-feira à tarde.
Pra não ficar sozinho, eu ia junto dele. Nós ficávamos a tarde toda subindo nos
pés de manga.
Foi saudade o que eu senti quando meu pai deixou
de ir à casa do pai dela. Ficamos 7 anos sem nos ver. Eu já tinha 17, e não me
lembrava muito bem do seu rosto. A única imagem que me vinha era borrada - a
moça dentro de um vestido laranja
rodopiando pelo quintal. Eu quis ver essa moça. Fui até a sua casa pra ver se
ela ainda morava lá. Não havia ninguém, mas o carteiro tinha acabado de deixar
uma correspondência na caixa de correios e eu tratei de ler o destinatário:
Júlio de Almeida Borges. Se o seu pai ainda morava ali, ela também havia de
morar. Fui até a venda do senhor Tomás e pedi uma folha e um lápis. Escrevi, em linhas garrafais:
"Tenho
saudade das quartas-feiras, das mangas e do seu vestido laranja. Espero que
você também tenha. Eram bons tempos. Passo aqui na quarta-feira da semana que
vem para te ver. Com carinho, Miguel."
Meus
passos curtos e reflexivos me levaram até a minha casa. Não entendia o porquê
daquela nostalgia repentina...
Meu
pai estava de saída e me pediu que fosse ao banco sacar algum dinheiro para fazer mercado. Agora ele tinha uma
grande plantação de palma-doce e
tinha o seu tempo muito ocupado. Fiz as compras pensando no que iria levar de
presente para a moça na quarta-feira. Coloquei as laranjas no saco sem contá-las, pois me ocupava mais em pensar no
que ela acharia do bilhete. Também tentava descobrir porque essa moça veio, de
repente, atentar meu coração.
A
quarta-feira chegou. Me ajeitava frente ao espelho como se estivesse indo
encontrar o meu primeiro amor. Eu ainda acredito que estava, minha filha.
Dobrei as mangas da minha camisa
azul e guardei em uma sacolinha o colar
que comprei depois de tanto olhar o retrato de minha mãe no quadro da sala.
A
moça estava sentada no banco de
pedra que ficava na frente da sua casa. A palma da minha mão ficou gelada e úmida. Me sentei ao lado dela.
Seu sorriso me amou desde aquele momento e ela me deu a mão. O quintal já
estava quase uma mata, mas os
pés de manga ainda existiam por entre as plantas. Tentamos subir em algumas árvores, e eu tentei ajudá-la,
mas o pesar do seu corpo sobre a
minha mão me desequilibrou e caímos, entre gargalhadas, no chão. Ela me disse
que sentiu saudades e perguntou por que a abandonei. Eu a beijei pela primeira
vez no mesmo quintal onde nos conhecemos. Você está rindo, meu bem? É... Eu sei
que parece mais uma história boba, como nos livros infantis. Até hoje não
entendi porque a vida me agraciou com aquele sorriso.
A
mão da moça me guiou durante alguns anos. Discutíamos, mas muito pouco, e as
noites eram só para pensar naquela sorte. Naquela leveza de vestido rodado, que
me amava, me amava, me amava até meu coração inflar.
Ela
me ligou numa segunda de manhã. Disse que seu pai tinha passado mal e que, pelo
quadro grave, estava sendo
trazido para um hospital na capital. Por vezes, filha, acho que o senhor Júlio
esteve na mesma em que estou. A diferença é que hoje te conto minhas histórias
e ele as contava para a minha moça. Ela veio embora, para o meu pesar. Ela dizia que era nosso, e que
queria se colar em mim pra nunca
mais a gente se separar. Mas não havia jeito, e quem diria o quê. Eu a levei na
rodoviária. Da bolsa que levava o colar,
ela tirou um trevo de quatro folhas
e me entregou. Era pra dar sorte. Era pra ela voltar.
Ela
não voltou. Me ligava sempre que podia, mas a vida dura de cuidar do pai
consumia todo o seu tempo, e foi prático casar com o médico do hospital. Ele
gostava e cuidava dela, que já estava tão cansada. Lá no interior, eu tentava ocupar a minha
cabeça para não sofrer tanto. Só queria saber de fazer minhas plantas,
que eram muitas, já que eu era o único arquiteto da cidade.
A
vida foi seguindo, minha filha. E eu prefiro esquecer que não me lembro do nome
da moça. Assim como esqueci como vim parar aqui... Vocês dizem que foi o meu
coração, não é mesmo? Ele já está velho como a minha tristeza... Mas, como diz
mesmo aquela música? Pra mim, é a saudade que mata a gente, menina.
Muito bom saber - que é "bom" e que toca.
ResponderExcluirDe coração.
E não posso falar nada, sempre venho aqui para ler...
Beijo.