12 de maio de 2013

A moça



            Talvez eu queira te contar a minha história. O problema é que na maioria das vezes eu confundo a minha história com a da moça. Minha lembrança às vezes parece ser só a dela, e isso aperta ainda mais o meu peito, sabe, minha filha? Imagina se eu não saio mais desse hospital porque a lembrança da moça não deixa meu coração melhorar? Talvez essa não seja mais a minha maior preocupação. Então, prossigamos.
            A gente se conheceu no quintal da casa dela, quando eu tinha 8 anos e ela 6. Meu pai era jardineiro e trabalhava na casa do senhor Júlio toda quarta-feira à tarde. Pra não ficar sozinho, eu ia junto dele. Nós ficávamos a tarde toda subindo nos pés de manga.
Foi saudade o que eu senti quando meu pai deixou de ir à casa do pai dela. Ficamos 7 anos sem nos ver. Eu já tinha 17, e não me lembrava muito bem do seu rosto. A única imagem que me vinha era borrada - a moça dentro de um vestido laranja rodopiando pelo quintal. Eu quis ver essa moça. Fui até a sua casa pra ver se ela ainda morava lá. Não havia ninguém, mas o carteiro tinha acabado de deixar uma correspondência na caixa de correios e eu tratei de ler o destinatário: Júlio de Almeida Borges. Se o seu pai ainda morava ali, ela também havia de morar. Fui até a venda do senhor Tomás e pedi uma folha e um lápis. Escrevi, em linhas garrafais:
            "Tenho saudade das quartas-feiras, das mangas e do seu vestido laranja. Espero que você também tenha. Eram bons tempos. Passo aqui na quarta-feira da semana que vem para te ver. Com carinho, Miguel."
            Meus passos curtos e reflexivos me levaram até a minha casa. Não entendia o porquê daquela nostalgia repentina...
            Meu pai estava de saída e me pediu que fosse ao banco sacar algum dinheiro para fazer mercado. Agora ele tinha uma grande plantação de palma-doce e tinha o seu tempo muito ocupado. Fiz as compras pensando no que iria levar de presente para a moça na quarta-feira. Coloquei as laranjas no saco sem contá-las, pois me ocupava mais em pensar no que ela acharia do bilhete. Também tentava descobrir porque essa moça veio, de repente, atentar meu coração.
            A quarta-feira chegou. Me ajeitava frente ao espelho como se estivesse indo encontrar o meu primeiro amor. Eu ainda acredito que estava, minha filha. Dobrei as mangas da minha camisa azul e guardei em uma sacolinha o colar que comprei depois de tanto olhar o retrato de minha mãe no quadro da sala. 
            A moça estava sentada no banco de pedra que ficava na frente da sua casa. A palma da minha mão ficou gelada e úmida. Me sentei ao lado dela. Seu sorriso me amou desde aquele momento e ela me deu a mão. O quintal já estava quase uma mata, mas os pés de manga ainda existiam por entre as plantas. Tentamos subir em algumas árvores, e eu tentei ajudá-la, mas o pesar do seu corpo sobre a minha mão me desequilibrou e caímos, entre gargalhadas, no chão. Ela me disse que sentiu saudades e perguntou por que a abandonei. Eu a beijei pela primeira vez no mesmo quintal onde nos conhecemos. Você está rindo, meu bem? É... Eu sei que parece mais uma história boba, como nos livros infantis. Até hoje não entendi porque a vida me agraciou com aquele sorriso.
            A mão da moça me guiou durante alguns anos. Discutíamos, mas muito pouco, e as noites eram só para pensar naquela sorte. Naquela leveza de vestido rodado, que me amava, me amava, me amava até meu coração inflar.
            Ela me ligou numa segunda de manhã. Disse que seu pai tinha passado mal e que, pelo quadro grave, estava sendo trazido para um hospital na capital. Por vezes, filha, acho que o senhor Júlio esteve na mesma em que estou. A diferença é que hoje te conto minhas histórias e ele as contava para a minha moça. Ela veio embora, para o meu pesar. Ela dizia que era nosso, e que queria se colar em mim pra nunca mais a gente se separar. Mas não havia jeito, e quem diria o quê. Eu a levei na rodoviária. Da bolsa que levava o colar, ela tirou um trevo de quatro folhas e me entregou. Era pra dar sorte. Era pra ela voltar.
            Ela não voltou. Me ligava sempre que podia, mas a vida dura de cuidar do pai consumia todo o seu tempo, e foi prático casar com o médico do hospital. Ele gostava e cuidava dela, que já estava tão cansada. Lá no interior, eu tentava ocupar a minha cabeça para não sofrer tanto. Só queria saber de fazer minhas plantas, que eram muitas, já que eu era o único arquiteto da cidade.
            A vida foi seguindo, minha filha. E eu prefiro esquecer que não me lembro do nome da moça. Assim como esqueci como vim parar aqui... Vocês dizem que foi o meu coração, não é mesmo? Ele já está velho como a minha tristeza... Mas, como diz mesmo aquela música? Pra mim, é a saudade que mata a gente, menina.

Um comentário:

  1. Muito bom saber - que é "bom" e que toca.
    De coração.
    E não posso falar nada, sempre venho aqui para ler...
    Beijo.

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