-estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando
dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que
vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização
profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que
eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria
chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque
saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso
prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi -
na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não
tenho capacidade para outro.
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque
não saberei onde engastar meu novo modo de ser - se eu for adiante nas
minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar
para eu caber nele. Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já
não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma
terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia
de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser
uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas
pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a
ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia
de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me
procurar.
Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova
covardia - a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha
maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande
coragem me leva a aceitá-la -, na minha nova covardia, que é como
acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de
simplesmente ir.
É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa
um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que
vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me
engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o
grande esforço de construção que era viver. A idéia que eu fazia de
pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão.
Mas e agora? estarei mais livre?
Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso
porque tenho por objetivo achar - e que por segurança chamarei de achar o
momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de
apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas
assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu
me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê.
Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana.
Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do
que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a
garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à
desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja
exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se
explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for
sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não
é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que
era! Por que é que ver é uma tal desorganização?
É uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal
devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez
desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se
deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi
desiludido.
(Clarice)
[doce sorriso...]
ResponderExcluirGosto da introspecção, bem típico da Clarice, nesse livro que você sitou, mas que li há muito tempo.
Abç!