25 de junho de 2013

Carta para o mundo


Não sei como se começa uma carta. Esqueci também como se usa o tom prosaico. Me tornei moderno demais e não consigo mais dissertar sobre minhas ideias. Faço grande força para que o ímpeto não me tome a mão, caso contrário a poesia me toma a mente e os versos jorram sem parar. E, você deve bem saber, a minha poesia não é também muito articulada - não aproveita as suas totais possibilidades - e só fala de mim, de mim, de ti.
Sempre que o parágrafo puxa meu lápis, tendo a me vestir de outro. Às vezes acho que pouco crio, mas muito creio. Finjo muito que não te amo, e escrevo muito sobre amores que não vivi, porém eu apenas finjo o que vejo, e não sou poeta, meu amor. Sou de todo ingênuo. De todo bobo.
Do que quero falar - eu também não sei. Às vezes parece que me lembro que as palavras podem refletir o mundo. Os fatos não falam por si, e disso eu já sei, pois então como vou te contar o que vivo sem reduzi-los à descrição? Palavras. Lavras. Lavra. Semeio aqui uma semente que, sinceramente, não conheço - eu sinto, mas não entendo. Eu finjo, só que não entendo. Por isso, às vezes empaco. E te empaco não só a leitura, mas também a vida, eu sei.
Você faz o mesmo, e conosco também fazem parecido - foi pena não te ver bradar frente ao Congresso aquele dia. Evitarei este assunto - e já me desculpo - porque posso me empacar no discurso e já acho que tropecei ao falar de viver.
Ora pois, é sempre tropeço se meter a falar. Mas calar também não seria parar e o tempo já não dá tréguas?
Ora pois, é sempre tropeço viver -e isso ninguém discute-, que a vida existe não há contradição, então não falemos do que não tem discussão.

E se humana ela é; o que dizer de tantos 'nãos'? Humanos somos esses que hostilizam o ser humano. Humanos somos nós que preferimos ser apenas vivos (e nada mais). Estamos vivos num tropeço, mas é só. Que a vida seja humana: não digo que sim nem que não.
Sabe que me meti a me calar quando mudei de assunto, e o tropeço na verdade acontece quando falo de amor. Esqueço das dores alheias, e sou eu todo ingênuo, que te disse, e se me meto a falar, fragmento as imagens para falar somente dos seus olhos.
Sei que você há de me perdoar, mas insisto em tentar me convencer de que há mais importância no mundo que não os seus olhos. Contudo a vida me parece tão profunda como eles. E  já não sei se tem mais ou menos mistério.
O mundo é tão grande e obscuro quanto teus olhos castanhos, meu amor. E tuas curvas se assemelham com o tempo, que me come, me come a vida e me dificulta a visão.

Os tempos são difíceis.

Por último, vou te descrever alguns fatos. Não será mera descrição, porque acredito que eles sejam a essência do que o mundo tem sentido junto a mim.

Hoje, na biblioteca, enquanto escrevia no meu caderno de morfologia a palavra 'indiferente', um moço
jogou um papel amarelo na minha mesa. Nele estava escrito: 'sou surdo' e outras dessas palavras que pedem atenção. Senti  vergonha de viver - desejo de viver sem me notar, como diria Chico -, e dei um sorriso sem graça quando ele voltou para pegar o papel de volta. Eu não tinha nem dez centavos.
Depois eu fui ao banco. Coloquei o meu carro em uma vaga onde estava um vigia de carros.
Ele me disse:
- A dona viu que desaforado o moço que estava no carro atrás do da senhora?
E eu, muito esnobe e com o pensamento nos meus grandes e complexos problemas, respondi:
- Não ouvi. Estava com o som do carro alto para isto mesmo, pra não ouvir desaforos gratuitos.
Ele me disse:
- Que isso dona, escute o mundo. Escute o mundo.


Os tempos são difíceis.


P.s: não me lembro onde devo datar a carta,
mas trata-se de um tempo sem relógio, enfim
entenda como
e quando quiser



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